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Homo Deus: Uma Reflexão

Felicidade, imortalidade e divindade. Estes três são, de acordo com Harari, os objetivos a serem perseguidos pelos seres humanos nos próximos anos.

Tal ideia encontra-se em seu best-seller, Homo Deus, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

É sobre este livro que gostaria de refletir com você, caro leitor. Mas meu objetivo não é traçar um resumo do livro ou elogiar/criticar as visões de futuro que o historiador israelita traz em sua famosa obra. Na verdade, penso que é importante a todos lerem o livro, já que, querendo ou não, expressa uma forma de pensar que vem se popularizando, ainda mais pela alta penetração de livros sobre futuro e tecnologia.

Meu ponto, com este pequeno texto, é levantar a necessidade de questionar não necessariamente as conclusões, mas, antes de tudo, as premissas utilizadas. Claro que, ao se questionar as premissas, conclusões geralmente são também repensadas. 

Homo Deus, de forma extremamente resumida, tenta mostrar os possíveis caminhos que a humanidade vai seguir, a partir das tendências de estudos principalmente da biologia, tecnologia e psicologia. É interessante perceber que menos de ⅓ é focado propriamente no futuro. Até essa parte, o autor busca dar as bases para a humanidade chegar no estado atual. Em primeiro lugar, ele o faz trabalhando questões da psicologia evolutiva desde os primeiros Homo sapiens coletores-caçadores, passando pelas revoluções agrícola e industrial, até chegar no ser humano moderno. Após traçar esse caminho, Harari foca em destrinchar o humanismo, que é a fase que estamos hoje, antes de supostamente nos tornarmos potencialmente o Homo Deus, diferente de tudo que conhecemos até então.

Esses dois tópicos são trabalhados com mais detalhes em outro livro do próprio autor, Sapiens, que dedica quase o dobro de páginas à história da humanidade.

Se você concordar com tudo que o autor descreve nessas primeiras duas partes de Homo Deus, todas as preocupações e questões para o futuro fazem total sentido. O problema de todo esse percurso é que, diversos pontos dados como certo por Harari, são extremamente complexos e discutíveis. O autor simplesmente toma por certo a psicologia evolutiva e uma visão positivista da realidade e descreve toda a realidade a partir das mesmas, como se estes dois temas fossem óbvios e auto evidentes. 

Tais pressupostos geram diversas afirmações complicadas, em especial envolvendo conceitos extremamente complexos como: alma, consciência, mente, Deus e liberdade. É interessante pensar que, durante seus dois livros, Harari praticamente relativiza diversos dogmas e formas de enxergar a realidade, já que entende tudo como fruto da adaptação do ser humano, junto à ideia de ordens intersubjetivas imaginadas (assunto esse que daria um bom debate para os entusiastas ao estudo de Cosmovisão), mas em momento algum faz um auto exame sobre o positivismo que permeia seu texto, talvez porque nem tenha consciência sobre essa visão filosófica.

Isso não seria de se estranhar. Uma importante professora minha de filosofia costumava dizer que perdíamos muito tempo debatendo assuntos como marxismo, niilismo, entre outros temas importantes da política/filosofia, mas nos esquecemos de algo que está tão enraizado na mente ocidental, que quase nem percebemos: o positivismo.

Caso você não esteja habituado ao tema, positivismo é uma corrente filosófica que surgiu no início do século XIX, principalmente com os livros de Augusto Comte, e foi se proliferando no meio acadêmico com suas variações ao longo do tempo.

Para o positivismo, só é passível de conhecimento e de estudo aquilo que é positivo para nós, ou seja, aquilo que nos aparece. A partir deste algo observável podemos fazer testes empíricos e chegar ao conhecimento científico de algo o qual, para o autor, é o único válido.

Comte entendia que a história já havia passado pelo período em que a teologia reinou e, estava encerrando, em sua época, o período filosófico. Com isso, surgiria o último período de todos, que seria o do conhecimento científico. Com ele, todas as abstrações teológicas e metafísicas deveriam ser deixadas de lado, para que o verdadeiro conhecimento pudesse aparecer. 

Então, alma, Deus(es) e até mesmo a ideia de mente sofreriam efeitos negativos do crescente pensamento positivista, sendo deixados de lado em detrimento daquilo que é empiricamente observável. O grande problema desta visão filosófica já foi alertada por Henri Bergson, grande filósofo francês do século XIX. Bergson percebeu que, ao ser adepto ao positivismo, os pensadores e acadêmicos começaram a ter uma limitação ao olhar para a realidade, já que se começou a aplicar o método científico, o único válido para essas pessoas (e para muitos até hoje), em todas as áreas do conhecimento.

Na psicologia, tema em que era caro à Bergson, vemos isso claramente no problema levantado pelo filósofo (e também trabalhado por outros autores) em que, no meio do entusiasmo causado pelo crescimento do conhecimento físico do cérebro, cientistas chegaram a reduzir tudo que existe na mente humana a uma simples reação ao que acontece em nosso cérebro, o chamado paralelismo. Bergson enxerga isso como um reducionismo causado pelo pressuposto de que tudo há é físico, logo, se só enxergo o cérebro e as relações neuronais, nada mais existe. Autores mais recentes, como Malcolm Jeeves, falam desse tema como uma confusão entre correlação e causalidade. Ou seja, confunde-se o fato de alguma parte do meu cérebro estar agindo de uma determinada forma porque estou triste, com o entendimento de que estou triste porque meu cérebro age de uma determinada forma. É óbvio que este é um assunto extremamente complexo e ninguém nega que lesões ou até mesmo a química cerebral não possa ter efeitos no humor. O problema é reduzir tudo ao cérebro como um ente físico, mas a ideia aqui não é fazer um debate sobre a relação mente-cérebro.

Caso você se interesse, podemos conversar mais sobre a visão de Bergson e suas críticas ao positivismo na totalidade. Mas, para não fugir demais do assunto, agora explicado o que é positivismo, voltemos ao livro de Harari.

Durante o texto, temas como a existência da alma, da liberdade, de Deus e, até mesmo, de uma mente propriamente dita, foram questionadas pelo autor. O problema é que Harari chegou a usar argumentos do tipo: “Abrimos o corpo humano e não encontramos alma lá dentro”. Este argumento é positivismo puro! É a mesma falácia que um astronauta ir ao espaço e dizer que não encontrou Deus lá. Nem poderia! Está se usando de métodos de conhecimento físico para chegar a conclusões metafísicas.

É óbvio que Harari questiona a ideia de alma e de um Deus, tratando até com desdém tais temas. Ele parte – sem questionar em momento algum — de que tudo que há é apenas o mundo físico, químico e biológico. Nós, seres humanos, somos pura e simplesmente frutos disso e, por isso, a única explicação para emoções e relações morais e sociais é a necessidade evolucionária e, consequentemente, podemos nos comparar a algoritmos computacionais — a base para o que o futuro nos aguarda. Como conclusão, também chegamos à perda de liberdade, já que tudo que fazemos é fruto apenas de nosso ambiente e nossos genes, ou seja, o que é positivo para nós. 

Tudo que vai além disso está fora de cogitação para Harari e, aparentemente, também para muitos dos cientistas entusiastas pela tecnologia do futuro. 

No entanto, a seguinte pergunta fica no ar: deveria estar fora de cogitação mesmo? Harari já discute o que está para vir com o desenvolvimento de novas tecnologias, mas ignora que muito do que ele toma como certo é debatível.

E se esses pressupostos são debatíveis, logo o que está por vir também é. Os efeitos podem ser maiores e piores (ou melhores) do que o imaginado.

Mas é claro que, já que se pode explicar de uma forma agradável aos ouvidos, colocando cada pingo no i, ninguém deveria questionar tais premissas. No entanto, criar uma explicação detalhada não prova nada. Qualquer seita consegue provar muita coisa, já que seus argumentos fazem sentido internamente.

Um exemplo disso vemos no controverso filme Vidro (eu gostei). Nele, uma organização prende os personagens com superpoderes e tenta os convencer de que estes poderes são apenas frutos de sua própria imaginação. Sr. Vidro, personagem interpretado por Samuel L. Jackson, diz um determinado momento que podemos explicar uma explicação racional para tudo, mesmo que ela não reflita a realidade. 

Podemos explicar como o ser humano funciona, bem como as relações interpessoais e as doutrinas morais, usando a evolução e aspectos meramente biológicos para tal. Mas não necessariamente isso explica a realidade como um todo, nem é suficientemente abrangente. Questionar tal reducionismo não é ser anticientífico, mas compreender que a realidade é complexa e pode envolver mais do que aquilo que aparece positivamente para nós.

Se, de fato, o mundo é mais que um positivismo aceita, logo nossas discussões acerca de ética, futuro e tecnologia, devem mudar. Mas, para isso, devemos primeiramente questionar o presente, mostrar que alguns temas dados como óbvios pela mentalidade moderna são, na verdade, muito mais complexos do que se parecem.

Por tal motivo quis escrever este texto acerca de Homo Deus. Existem diversos outros temas no livro os quais poderiam ser debatidos, como as diversas interpretações errôneas que o autor faz da religião judaica e cristã, a definição controversa de liberdade adotada ou as implicações práticas do que o futuro profetizado nos aguarda. Mas, mais do que isso, acredito que o livro pode ser um chamado para refletirmos sobre o que lemos, pensamos e vemos. A filosofia sempre começa com uma pergunta, um questionamento. E se tratamos de temas filosóficos, precisamos questionar os pressupostos que adotamos.

Rodrigo Galente
Formado em Administração pelo Mackenzie, Master in Divinity pelo Seminário Teológico Servo de Cristo e bacharel em filosofia pela Faculdade de São Bento. Presbítero da Igreja Batista da Palavra.

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