Quando estive fora do Brasil, poucas coisas me fizeram sentir tanta falta daqui quanto a vontade de comer num bom self-service. Feijãozinho quente, arroz soltinho e uma variedade de “misturas” – carnes, peixes e, às vezes, até um bom torresminho. Guardadas as devidas proporções, acredito que no Brasil muitos cristãos têm caído numa “síndrome do self-service”: gosto da igreja assim, ou assado. Louvor é assim, ou assado. A liturgia do culto (ou a falta dela) é desse jeito, ou daquele outro. Gosto muito dos self-services. Não poucas vezes desfrutei das muitas opções, mas também não poucas vezes passei dos limites na gana de querer tudo – quem é que imaginaria que misturar pastelzinho com feijoada não seria uma boa?! Essa, para mim, é uma clara demonstração de que nem sempre fazer o que te apetece dá bons resultados.
Se isso é verdade quando aplicado a nós mesmos, nossos gostos e nosso corpo (sobre o qual, aparentemente, temos controle), quanto mais deve ser verdadeiro em relação ao modo como adoramos a Cristo (de quem a Igreja é corpo). A base do nosso serviço a Deus em comunidade é muito mais do que apenas aquilo que desejamos, gostamos ou acreditamos ser correto. Para sermos Igreja de Deus de fato, precisamos servi-lo de modo agradável a Ele, não apenas a nós.
Cultuando ao Deus que se revela
Meu pai gosta muito de suco de laranja e minha mãe, de plantas suculentas. Posso afirmar isso com propriedade apenas porque conheço ambos, e eles em algum momento me disseram que gostam dessas coisas. Por um lado, há uma semelhança com nosso relacionamento com Deus. Tudo que sabemos sobre Deus, sabemos porque Ele se revelou a nós. Seja por meio da sua revelação geral (Rm 1:20, Sl 19:1-4), seja por meio da revelação especial (Hb 1:1-2), é Deus quem dá o primeiro passo nos dizendo quem Ele é e descortinando partes da sua vontade a nós.
Contudo, no movimento de Deus estender sua mão a nós, nasce um abismo gigantesco entre o modo que nos relacionamos com nossos pais e amigos e o nosso relacionamento com Deus. Eu posso, em boa consciência, presentear minha mãe com algo que eu goste (como por exemplo, orquídeas) sem que isso a chateie. Porém eu, como homem, não estou em posição de oferecer nada a Deus (e ainda menos fazê-lo porque eu goste ou ache legal). Isso é uma constatação da condição humana: só podemos adorar do modo que Deus designa pois Ele é a própria base da adoração, o meio e a razão pelos quais podemos adorá-lo.
O Senhor, através dos tempos, sempre designou maneiras aceitáveis ou não de adorá-lo, de forma pessoal ou comunitária. Seja na história de Caim e Abel (Gn 4), nos famosos 10 mandamentos (Ex 20:3-4,7-8), nos avisos de Deus contra os israelitas buscarem “ideias” de adoração entre as nações ao seu redor (Dt 12:30-32) ou na censura de Cristo ao modo de adoração dos fariseus (Mc 7:6-7), esse princípio bíblico é claro. Se aplicamos o Sola Scriptura na nossa adoração, entendemos que definir o como nós, pecadores, devemos adorar é uma prerrogativa unicamente de Deus, e esse é o ponto de partida de todas as nossas percepções.
Adorando como Deus quer
Quando olhamos para as línguas originais da Bíblia (o hebraico e o grego) descobrimos que as palavras que frequentemente traduzimos como adoração seus derivados partem de raízes que denotam o sentido de “serviço” ou de “prostrar-se diante de alguém”. 1Para um estudo mais aprofundado, consulte o tópico “Adoração” no Novo Dicionario De Teologia (Editora Hagnos). Nossa vida inteira deve ser uma de serviço e sacrifício para a glória de Deus (Ef. 5:20, Cl. 3:17), em cada aspecto das nossas vidas (1 Co 10:31). Encorajo você a se aprofundar no tema de viver para a glória de Deus e se surpreender com o impacto disso na sua vida. Contudo, vamos falar aqui sobre o aspecto mais específico do culto a Deus – aquele feito por nós como comunidade, como povo de Deus se unindo para exaltá-lo por meio da pregação da palavra, louvores e orações. É aí onde o perigo do self-service tem se mostrado cada vez mais latente.
Deus, em sua soberana vontade, poderia ter escolhido dentre um zilhão de maneiras para O adorarmos como seu povo. Por exemplo, o Senhor poderia ter definido um horário do dia no qual (onde quer que estivéssemos) todos renderíamos graças a Ele e louvor ao Seu nome (de modo ligeiramente semelhante aos muçulmanos em seus horários de oração). Ele poderia ter escolhido maneiras puramente espirituais e invisíveis, ou até outro modo além do alcance de nossa imaginação. Mas coube bem a Ele ditar as regras e nos dar diretrizes de como Ele quer ser adorado.
Como já vimos, o foco do culto é o próprio Deus. E, desde o começo da história vemos o Senhor engajando-se em diálogos com os seus (Gn 3:9, 22:1; 1 Sm 3:4). Mas ao contrário de Adão, que após o pecado não respondeu ao Senhor e se escondeu, o povo de Deus tem em Cristo a possibilidade de dizer “Eis-me aqui!” ao chamado de Deus. Esse é ponto frequentemente negligenciado na nossa adoração coletiva: o culto é um diálogo. Deus fala ao seu povo, convoca a adorá-lo, e o povo responde a Deus orando, contribuindo, cantando e confessando sua fé. Ou seja, o culto não é uma via de mão única e sim uma conversa firmada sobre a aliança de Deus para com seu povo. Seja pelo foco excessivo na música em detrimento da Palavra (em cultos que são quase shows), ou, de forma oposta, pela negligência do canto congregacional (tirando do povo a oportunidade de louvar ao Senhor audivelmente), estamos aquém do que o Senhor quer de nós.
Mas e quanto aos elementos do culto? Podemos encontrar um pequeno vislumbre de como era a igreja do começo do primeiro século em Atos 2:42-47. Vemos que a igreja se engajava na comunhão (como povo de Deus), no ensino dos apóstolos (a Palavra do Senhor), no partir do pão (a Ceia), nas orações e na caridade. Esses princípios, além de serem bons balizadores por terem sido registrados na Palavra de Deus sem desabonos, também são vistos por toda a palavra. O Catecismo de Heidelberg, ao discorrer sobre o que Deus exige de nós no quarto mandamento, resume bem e embasa esses pontos da seguinte maneira (p. 103): “[…] Devo reunir-me fielmente com o povo de Deus, especialmente no dia de descanso (Lv 23:3; Sl 40:9,10; Sl 122:1; At 2:42,46), para conhecer a palavra de Deus (1Co 14:1,3; 1Tm 4:13; Ap 1:3), para participar dos sacramentos (At 20:7; 1Co 11:33), para invocar publicamente ao Senhor Deus (1Co 14:16; 1Tm 2:1-4) e para praticar a caridade cristã para com os necessitados (Dt 15:11; 1Co 16:1,2; 1Tm 5:16).” Esse parece ser o modo bíblico de cultuar a Deus. João Calvino, ao endereçar as práticas litúrgicas da igreja romana, conclui que se até mesmo Moisés foi proibido de adicionar ou subtrair algo mesmo não tendo a revelação completa, quanto mais severamente nós seríamos proibidos de o fazer, tendo conhecimento de Cristo que é o ápice da revelação divina. 2Institutas IV.X.XVII
Essa é uma verdade dura, mas que é necessária: existem muitas práticas nas igrejas que não fazem parte da adoração pura a Deus. Teatros, coreografias, acender de velas, hinos patrióticos ou honras militares não fazem parte do culto da Igreja verdadeira – e sim somente aquilo que Deus ordenou.
E a minha liberdade?
A resposta mais comum a esse tópico é “Certo, mas e como fica minha liberdade em Cristo?”. Essa pergunta demonstra uma grande confusão sobre a obra de Cristo e seu resultado. A liberdade em Cristo é uma liberdade da culpa e do poder do pecado, e nos céus seremos livres da presença do pecado. Isso não significa que somos livres para adorar a Deus da maneira que quisermos, assim como quem está fora de uma prisão não é livre para fazer o que quer. Deus ainda impõe regras e padrões sob os quais estamos e devemos viver.
Eu entendo que muitas dessas práticas extrabíblicas aparecem em nossos cultos como devoção sincera. É bem possível e provável que alguém queira dançar ou fazer teatro no culto solene como adoração a Deus, assim como devemos fazer com todos os outros aspectos da nossa vida. A sinceridade de coração, no entanto, não é um passe livre para fazermos o que dá na telha.
Vejamos o exemplo de Caim e Abel em Gênesis 4. Ambos vieram a Deus com suas ofertas – e, muito provavelmente, ambos em sinceridade de coração. Abel ofereceu sacrifício agradável ao Senhor, Caim não. Um trouxe “das primícias do seu rebanho e da gordura deste” (Gn 4:4), e o outro “trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor” (Gn 4:3). Um deles ofereceu pela fé (Hb 11:4) sacrifício semelhante àquele feito por Deus para cobrir o pecado de seus pais (Gn 3:21), o outro não. A sinceridade do coração não foi fator decisivo na aceitação de Deus, e sim o padrão que o próprio Deus havia colocado.
O caso de Nadabe e Abiú em Levítico 10 só reforça esse conceito – o Senhor não aceitou o fogo estranho, independente da sinceridade com a qual Nadabe e Abiú tivessem em seu coração. Do mesmo modo, Deus rejeitou qualquer traço de sinceridade que pudesse haver no coração dos israelitas que fizeram o bezerro de ouro e proclamaram festa ao Senhor diante do altar – mesmo que, com sinceridade, eles acreditassem que aquela era a imagem daquele que os tirara do Egito. Diversas vezes esse padrão é repetido na Bíblia, de modo que Calvino resume “[Deus] há muito declarou que não há nada que mais o ofenda senão quando é cultuado por meio das invenções humanas” (Institutas IV.X.XVII).
A benção na adoração verdadeira
Entender isso não deve gerar desesperança, como se esse conhecimento só nos gerasse condenação. Pelo contrário, achamos grande alegria e bençãos no culto centrado em Deus. Os ritos cerimoniais do Velho Testamento se cumpriram em Cristo, e temos liberdade de dialogar com nosso Pai por meio de Cristo pela obra do Espírito (Ef 2:18). Podemos responder, com confiança, ao chamado de Deus e dizer “Eis me aqui, Senhor!”. Podemos confessar nossos pecados como corpo, e ouvir de Deus a esperança do perdão (1 Jo 1:9).
Cantamos, oramos, doamos, servimos e ouvimos sua Palavra por meio dEle, por Ele e para Ele! Quando abraçamos a visão bíblica da adoração comunitária perdemos sim o nosso self-service, mas com certeza ganhamos um menu recheado de bênçãos preparados pelo melhor nutricionista espiritual de todos – o próprio Deus.