Filosofia

Uma sociedade emotivista e seus debates desarticulados

Se você tem mais de 18 anos, e não mora em uma caverna, muito provavelmente já se viu envolvido em algum debate moral. Não precisa ter sido com muito afinco, meras discussões sobre o aborto, ou decisões da suprema corte já bastam para você ter adentrado, ainda que minimamente, nessa arena dos debates morais.

Agora, caso você já tenha uma certa experiência nessa arena, deve ter notado o quão difícil é convencer seu adversário de que sua posição é coerente e racional, do mesmo modo que é igualmente difícil ser convencido, embora possa acontecer algumas vezes. Claro, existem muitas técnicas argumentativas que podem nos ajudar, uma boa oratória, o uso de estatísticas e dados matemáticos, dentre outros apelos e jogadas argumentativas que podemos fazer. Contudo, é possível chegar à verdade por uma via racional? Ou melhor, existe alguma racionalidade em nossa moralidade que nos permite, por meio da razão, chegar a uma solução moral?

MacIntyre, filosofo moral britânico, no livro After Virtue, publicado em 1981, ao realizar um diagnóstico da moralidade moderna, percebe uma profunda confusão na linguagem moral. Usamos conceitos como justiça, dever, bem e mal, de forma confusa e muitas vezes sem sentido. Para esse autor, normalmente intitulado um comunitarista, ao lado de nomes como Charles Taylor e Michael Sandel, vivemos em um período no qual possuímos apenas fragmentos de conceitos morais. Longe dos contextos originais que lhes atribuíam significado, é como se tivéssemos apenas pedaços pequenos de um grande mapa. Isso explica muito da confusão que presenciamos hoje nos debates morais, em que cada indvíduo quer guiar o outro baseado em um fragmento de um mapa. Visando aprofundar essa análise, MacIntyre destaca três características dos debates morais que vivenciamos atualmente, as quais nos permitem entender melhor o problema.

Características dos nossos debates morais

O primeiro traço marcante desses debates é que eles são intermináveis, são uma verdadeira guerra de argumentos e contra-argumentos marcada pela repetição exaustiva de cada posição, como se os indivíduos que debatessem entre si fossem quase incomunicáveis. Duas pessoas debatem sobre se o Estado deve ou não legalizar o aborto, contudo, ambas não chegam nem perto de uma solução racional, pois as premissas que sustentam suas posições morais são incomensuráveis, extremamente distintas. Suas conclusões até podem ser lógicas, e decorrerem de fato de suas premissas, entretanto, quando adentramos no âmago do raciocínio, no ponto de apoio das conclusões, naquilo que está na base, nas premissas iniciais fundamentais, não é possível decidir sua validade por um parâmetro decisório racional. Assim, o debate se torna muitas vezes em nada mais que uma guerra de afirmações arbitrárias.

MacIntyre chama isso de incomensurabilidade conceitual dos argumentos rivais, o que significa dizer que é impossível definir, racionalmente, qual indivíduo nessa arena moral está correto, já que não temos critérios para definir qual premissa está correta. Não por acaso, essa redução do debate a uma questão de pura argumentação e contra-argumentação leva a um relativismo, visto que cada pessoa tem sua própria moralidade, racionalidade e verdade. Nesse cenário, eu posso até argumentar contra a conclusão do meu adversário, mas quando chegamos em nossas premissas, a discussão perde sua racionalidade e se transforma na expressão de um subjetivismo moral irracional.

Contudo, não obstante a impossibilidade de justificação e sopesamento racional das diversas percepções morais existentes, tais debates com frequência se revestem de argumentações impessoais e racionais, isto é, fundadas tão somente na racionalidade dos agentes 3Expressão retirada do artigo INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALASDAIR MACINTYRE: ANÁLISE DA ÉTICA DAS VIRTUDES A PARTIR DA OBRA “DEPOIS DA VIRTUDE (DO COUTO, Lucas), o que confere um ar paradoxal a tudo o que acabamos de dizer até então. C.S Lewis, em Cristianismo Puro e Simples, pode ajudar a entender essa segunda característica quando afirma:

“O que me interessa em todos estes comentários é que o homem que os faz não está apenas expressando o quanto lhe desagrada o comportamento do seu interlocutor; está também fazendo apelo a um padrão de comportamento que o outro deveria conhecer. (LEWIS, C.S 2005, p.5) ”

Essa segunda característica torna os debates morais paradoxais, como ora mencionado, pois, vimos que eles nada mais são que choques de desejos subjetivos incomensuráveis, isto é, ao mesmo tempo que os indivíduos não possuem critérios racionais para resolver um dilema ético, apelam a padrões objetivos de solução. Defendemos que nossas argumentações se pautam em preceitos racionais, o que, teoricamente, nos possibilitaria chegar a uma conclusão racional universal. Não temos critérios racionais para definir a posição moral correta, mas ao mesmo tempo, como Lewis disse, apelamos a um padrão racional e objetivo que o outro deveria conhecer.

A última, e importante característica, é que nossas premissas morais possuem origens radicalmente distintas, ao que podemos chamar de heterogeneidade das premissas rivais. Quando discutimos sobre justiça, não raro, partimos de pressuposições morais, as vezes sem perceber, radicalmente distintas. Um lado defende uma concepção de justiça rawlsiana, outro se pauta em um modelo marxista, as diferentes premissas que sustentam as diversas concepções morais antagônicas são advindas de fundos históricos bastante distintos.

Existe uma enorme complexidade nas linhagens argumentativas que estamos inseridos, por isso há tantas posições diferentes. O indivíduo pode pensar de acordo com uma tradição marxista, se valendo de conceitos como luta de classes, mais valia, e assim elaborando seus argumentos dentro desse contexto lógico, até que suas premissas o levem a uma conclusão racional. Do outro lado, o indivíduo pode pensar a conduta humana e a moral, em um contexto aristotélico, no qual derive suas conclusões a partir de conceitos como justiça e dever, dentre outros compatíveis com essa tradição filosófica específica.

Diante de tal desordem no nosso discurso moral, como explicamos a própria modalidade, que constatamos que possuem premissas morais incomensuráveis, com pretensão de objetividade e de imensa heterogeneidade? A saída, cada vez mais recorrente, adotada pela modernidade é dar uma explicação emotivista a essa desordem.

Ethos emotivista

Todas observações e características da moralidade atual destacadas até aqui, revelam uma sociedade fragmentada e desarmoniosa ao realizar seus juízos éticos, de modo que, esses juízos, nada mais são do que meras afirmações subjetivas e arbitrárias.

O que o emotivismo afirma é, principalmente, que não existe e não pode existir justificativa racional válida para qualquer afirmação da existência de padrões morais objetivos e impessoais e, portanto, que tais padrões não existem (MACINTYRE, 2001, p. 43)

Dentre as inúmeras coisas que a revolução digital proporcionou para a humanidade, ferramentas como Instagram, Twitter, Facebook, YouTube, dentre inumeráveis outras, ajudam a constatar, ainda com mais facilidade as características mencionadas acima. Essas ferramentas funcionam como janelas que mostram claramente esse estado de desordem moral que nos encontramos, e que, ao mesmo tempo, evidencia uma sociedade emotivista, em que o Ethos humano se comporta de acordo com a correnteza dos sentimentos. Essa é a única conclusão possível que podemos chegar se partirmos do pressuposto de que a moralidade nada mais é que expressões da vontade humana arbitrária, uma vez que não existem parâmetros racionais para solucionar dilemas morais.

“O pressuposto desse esquema é justamente o que o emotivismo nega: que existam modelos morais genuínos objetivos e impessoais; e a tarefa de MacIntyre é, precisamente tentar reabrir essa possibilidade para a moralidade de nosso tempo.” (CARVALHO, 2012, versão Kindle)

Nesse mundo desordenado, o que nos impede de relativizar qualquer coisa —seja a vida, a liberdade, a justiça, o dever? Se esses conceitos não passam de preferências arbitrárias subjetivas, frutos de nossos sentimentos morais, quem define que sacrificar idosos improdutivos em prol da economia do país é moralmente errado? Nesse universo moral desordenado, uma visão emotivista da ética nos leva a concluir que a moralidade humana nada mais é do que a expressão de vontade do mais forte.

Em suma, MacIntyre demonstra, com certa maestria, que estamos imersos em um contexto que nos parece cada vez mais desordenado. Muitas vezes não conseguimos enxergar uma solução racional para os debates morais, parece impossível encontrar a resolução de um problema oriundo de duas posições antagônicas, e consequentmente acabamos caindo em um relativismo. No entanto, ao mesmo tempo, apelamos para padrões racionais que o outro deveria conhecer, tentamos ser objetivos, buscamos a verdade e argumentamos para que o outro reconheça isso. Como solucionamos esse paradoxo? Essa é uma pergunta complexa, não é possível apresentar uma solução simples, MacIntyre talvez diria que poderíamos começar entendo os conceitos morais à luz das tradições que os conferem significado, o que seria uma forma de resolução desses debates por uma via racional. Contudo, será que a racionalidade humana, ainda que exercida perfeitamente, seria suficiente para solucionar todos os nossos dilemas morais?

Referências

CARVALHO, H. B. A. D. Tradição e Racionalidade na Filosofia de Alasdair MacIntyre. 2º. ed. Teresina: EDUFPI, 2012.

COUTO, L. D. INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALASDAIR MACINTYRE: ANÁLISE DA ÉTICA DAS VIRTUDES À PARTIR DA OBRA “DEPOIS DA VIRTUDE”.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. 3º. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

MACINTYRE, A. After Virtue: A Study in Moral Theory. 3º. ed. Indiana: niversity of Notre Dame Press, 2007.

Jason Magave
Especialista em Direito Tributário pelo Mackenzie. Atualmente pesquisa sobre Teoria e Filosofia do Direito mais especificamente, teorias sobre direito natural. Original de Belém-PA. Membro da Igreja Batista da Palavra e salvo por Deus.

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