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Uma introdução a visão política de João Calvino

Os países ocidentais na sua maioria tem adotado, nos últimos anos, uma estrutura organizacional que explicitamente separa o Estado e a igreja. Essa adoção tem sido aceita pela Igreja com certas ressalvas: consideramos a separação necessária para a preservação da liberdade religiosa e de culto e também de que haveria grande dificuldade em manter-se uma Igreja do Estado que mantenha intacta a doutrina sã, ou até mesmo de que o Estado escolheria adotar a religião Cristã e não alguma outra.

No Século XVI, no entanto, a visão política era diferente, e a Reforma se tornou um momento tanto político quanto religioso. O princípio do “Cuius regio, eius religioera aplicado e qualquer movimento contrário ao Catolicismo Romano era considerado, não só uma rebelião contra a igreja e heresia, mas também como levante contra o estado. Lutero com as suas 95 Teses contra a Igreja Católica (e os outros reformadores que seguiram) foi, de certo modo, um dos estopins para mais de um século e meio de tumulto na Europa. Isso se deu por conta da maneira que a Reforma se entrelaçava com as dinâmicas internas da política europeia da época, segundo Daniel Nexon, autor de “A luta pelo poder no início da Europa moderna: conflito religioso, Impérios Dinásticos” 7Nexon, Daniel H. The Struggle for Power in Early Modern Europe: Religious Conflict, Dynastic Empires, and International Change. Princeton University Press, 2009.

Um outro elo comum entre os reformadores do Século XVI é, além de outras coisas, o seu apreço pela literatura patrística, em especial suas citações da obra de Agostinho e a influência que essa exerceu sobre eles. Lutero era um monge agostiniano. Calvino, apesar de não ter sido ordenado na Igreja Católica, também bebeu da teologia agostiniana, tendo citado-o milhares de vezes em sua obra. 

Agostinho em sua obra De Civitate Dei (“A Cidade de Deus”) divide a humanidade em dois reinos: o reino de Deus (civitas Dei) e o reino terreno (civitas terrena). Essa antítese entre os reinos é evidente no pensamento de Agostinho. Contudo, não é a intenção da obra levar os cristãos à alienação das estruturas terrenas, pois, segundo Agostinho, “estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas”. 8Santo Agostinho, A Cidade de Deus, tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. Entendemos, então, que apesar de espiritualmente separadas, tanto as estruturas seculares quanto as da igreja estão sob o juízo de Deus.

Calvino e a sociedade civil

Dentre os reformadores influenciados por essa visão agostiniana, Calvino é um dos quais podemos extrair com mais clareza as opiniões quanto a política e administração da sociedade civil, e da influência desta na vida da Igreja. No Livro IV, Capítulo XX das Institutas da Religião Cristã, Calvino trata especialmente do assunto do Governo Civil e da administração política. Nos primeiros parágrafos do capítulo, o teólogo apresenta a seguinte ideia:

“Ora, ainda que o teor desta consideração pareça ser em natureza distinto da doutrina espiritual da fé, o qual me propus haver de tratar, contudo o andamento da matéria mostrará que com razão tenho que enfrentá-la, mais ainda, sou impelido pela necessidade a fazer isso, especialmente porque, de uma parte, homens dementes e bárbaros tentam furiosamente subverter esta ordem divinamente estabelecida; de outra, porém, os aduladores dos príncipes, exaltando-lhes desmedidamente o poder, não duvidam opô-la ao domínio do próprio Deus. A menos que se resista a um e outro desses dois males, a integridade da fé perecerá.”

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã: edição clássica. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. Editora Cultura Cristã, 2006

Fica claro, por essa afirmação, que Calvino não cria em nenhum dos opostos. O Anarquismo – que tem tomado novas roupagens no século XXI com o anarco-capitalismo – e a rebelião contra as autoridades são considerados como subversão da ordem divina, discurso esse que é muito consoante com a exortação de Paulo em Romanos 13 sobre o papel das autoridades. Historicamente, ele falava contra os Anabatistas, os quais consideravam o governo como desnecessário. Por outro lado, a exaltação do estado em si e do seu poder, além da colocação desse como acima do julgamento de Deus, também é condenada. Nenhum desses extremismos políticos era bem visto por Calvino, e defender a Fé Cristã da influência de ambos era especialmente importante para ele.

Do objetivo do Governo

Se o posicionamento de Calvino quanto ao Estado não se encaixa em nenhum dos extremos, é oportuno então que observemos sua visão expressa em sua obra.  Calvino, em seu Comentário de Romanos 9CALVINO, João. Romanos. Editora Fiel, 2014 expressa sua interpretação sobre o versículo 4 de Romanos 13:

“Os magistrados podem aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração não deve ser feita em função de si próprio bem público. Nem têm eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem-estar de seus súditos.”

Nas Institutas (Livro IV, Cáp XX, Seção IX), ao somar os ensinos do Velho Testamento quanto aos reis de Israel, conclui que os que são constituídos de autoridade, “são constituídos protetores e vindicadores da inocência, decência, honestidade e tranqüilidade públicas, aos quais só cabe um empenho: prover a comum segurança e paz de todos”. E esse objetivo só seria alcançado, se “livrassem os homens bons das iniqüidades dos réprobos; e também [fossem] armados para dar assistência com ajuda e proteção aos oprimidos”.

Além desse viés de bem-estar do povo, Calvino acrescenta também a sua visão de Estado como sentinela contra a quebra do primeiro mandamento. Ele diz que o Estado “atenta não apenas para aquilo que todos os homens respiram, comem, bebem e sejam mantidos confortáveis, ainda que certamente abranja a todas estas coisas, enquanto provê que vivam juntos; insisto, contudo, que se deve atentar não só para isso, mas também que a idolatria, os sacrilégios contra o nome de Deus, as blasfêmias contra sua verdade e outras ofensas da religião não emerjam publicamente e se espalhem entre o povo, para que não se perturbe o sossego público;” (grifo meu)

Note que Calvino explicitamente faz a ligação entre as ofensas ao primeiro mandamento e a perturbação ao sossego público. Para ele, então, tanto Igreja como Estado tem um propósito definido, que é proteger o povo. A Igreja, espiritualmente e o Estado, fisicamente. Se o nosso Deus não tolera nenhum Deus além dele, isso engloba todos os aspectos da vida humana, incluindo a política, que deve ser subordinada a Ele e, fundamentalmente, utilizada para Seus propósitos. Ele diz que sua visão para o governo civil não é de que legislem como queiram e ditem a verdadeira Religião e sim tem o objetivo de protegê-la pra “não seja abertamente e por sacrilégios públicos impunemente violada”. 

Quantos aos políticos (ou magistrados), no Livro IV, Cáp. XX, Seção VI das Institutas, Calvino diz que tais devem sempre serem lembrados de seu papel como autoridades constituídas por Deus, para que “com todo cuidado, zelo, diligência, para que representem em si, aos homens, uma como que imagem da divina providência, proteção, bondade, benevolência e justiça”. A cobrança de impostos, vistos como Bíblicos por ele, citando figuras como Davi, Ezequias, Josiais, José e Daniel para que esses sejam por exemplo de como é possível usar os recursos provenientes do povo de forma piedosa. Calvino considera ainda que o destino dessas rendas seja para o benefício do próprio povo e não para os cofres dos reis e magistrados, e de que “os impostos e todos os demais tributos não passam de subsídios da necessidade pública, e que agravar com eles, sem causa, ao povo outra não é senão uma tirania e um latrocínio.”

A Genebra de Calvino

É um grande mito atual de que Calvino teria governado Genebra com mão de ferro durante sua vida. Na verdade, Calvino nem mesmo se envolveu nos aspectos políticos da cidade. O único cargo público que ele ocupou foi o de Pastor e ainda durante pouco tempo (cerca de 2 anos). Após isso o povo de Genebra que havia em 1536 quebrado seus laços com a Igreja Católica, expulsou Calvino e William Farel (outro reformador que havia convencido Calvino a ficar e ajudar na reforma em Genebra) por considerarem o modo de implantação dessa nova fé reformada muito duro. Depois de alguns anos, em 1541, Calvino voltaria a cidade por convite, deixando sua vida estabelecida em Estrasburgo e pronto a abraçar os problemas da Genebra agora tomada pelas divisões religiosas (entre eles os papistas e os anabatistas que se opunham ao governo). 

Como se organizava a cidade de Genebra durante esse tempo, então? A Genebra desse tempo era governada por diversos conselhos: O Conselho dos 200, o dos 60 e o dos 25, eleitos pelo povo e que nem sempre estavam de acordo com as ideais da igreja. Essa, por sua vez, era governada pelo Consistório (que era formado tanto de pregadores como de anciãos comuns da igreja, com função similar aos sínodos das igrejas reformadas atuais), o qual tinha a palavra final sobre todos os assuntos pertinentes a igreja e que, em alguns momentos, enviava pessoas aos conselhos da cidade para disciplina civil. Prova de que nem sempre essas duas instituições viviam em harmonia é de que durante o ministério de Calvino o Conselho Municipal legislou que o Consistório não teria direito de excluir pessoas da igreja – resolução essa ignorada pela igreja, de acordo com a visão de sua separação do estado. 

No caso de Miguel Servetus, muito utilizado pelos críticos de Calvino para potencializar nele uma imagem de ditador, Calvino não “o jogou a fogueira”, como dizem alguns. Deixando de lado o mérito da corretude do ocorrido ou das circunstâncias da época que levaram a tal medida, Calvino apesar de ter levado Serveto ao julgamento dos Conselhos teve pouca participação no processo, além de ser testemunha. Antes disso Calvino se arriscou, indo a Paris em busca de Servetus, na esperança de convencê-lo de suas blasfêmias e ganhá-lo para Cristo. 

Quando Servetus chegou a Genebra, onde foi reconhecido por Calvino e levado à justiça civil por suas heresias contra a trindade, ele já havia sido levado à Inquisição Católica (nas mãos da qual tivesse ele perecido, seria apenas mais um) pelo mesmo motivo, fugindo da prisão e indo até Genebra. Tendo o caso de Servetus sido julgado pelas autoridades civis (que pela sua própria ótica julgaram os ensinamentos dele como subversores da ordem), ele foi condenado a morte. Fica claro então que Calvino como acusador que foi teve sua parte no caso. Porém, a condenação de Miguel Servetus não foi o resultado dos devaneios ditatoriais do reformador de Genebra, como alguns apresentam.

Conclusão

Mesmo com seus defeitos, vemos na visão política de Calvino um coração cristão, fervente e temoroso a Deus. Alguém que cria e pregava a necessidade da retidão moral e da submissão a Deus em todas os aspectos da sociedade, e que acreditava que o Governo reto deve governar as pessoas para seu próprio bem. E apesar de saber que dado a natureza pecaminosa do ser humano nunca haveria uma nação perfeita nessa terra, cria que a colaboração cuidadosa entre a igreja e o estado era o melhor caminho para vivermos na terra, aguardando os “dias [em que] florescerá o justo, e abundância de paz haverá enquanto durar a lua” sob o Reino daquele que “dominará de mar a mar, e desde o rio até às extremidades da terra.” (Salmos 72:7,8)

João Lucas Lucchetta
João Lucchetta – também conhecido como Luke – é co-fundador do Projeto Reflita. Trabalha como Desenvolvedor de Software na área financeira e tem interesse em assuntos como Cosmovisão Cristã, Teologia Puritana e Filosofia da Tecnologia.

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