Review: de “12 regras para a vida: Um antídoto para o caos”, por Jordan Peterson
“Quanto mais você treinar, mais sorte terá. Controle o seu destino ou alguém controlará. Amanhã será melhor do que hoje. Trabalhe enquanto eles dormem. Passarinho que acorda tarde bebe água suja. Você pode se livrar das escolhas, mas nunca das consequências. Yes, we can!
Parece que a onda do coach e da psicologia positiva chegou e se estabeleceu não apenas no Brasil, mas em boa parte do ocidente. A cada F5 vemos alguém querendo nos ensinar a viver. Naturalmente, existem os coach piada pronta. Contudo, existem também bons profissionais nessa área, que em sua maioria atuam como mentores, compartilhando sua experiência profissional em um determinado ramo do mercado.
Uma figura em particular despertou muita atenção recentemente. Jordan Peterson, psicólogo clínico e professor universitário, não é coach e muito menos um influencer, mas suas regras para a vida tem permeado a mente de muitos no ocidente. Dessa forma, meu objetivo nesse texto é resumir a tese do primeiro capítulo do seu livro e apresentar um contraponto cristão às principais ideais desenvolvidas pelo autor.
A tese de Peterson
[…] Pare de se curvar e ficar se arrastando. Fale o que pensa. Apresente seus desejos como se tivesse direito a eles – pelo menos o mesmo direito que os outros. Caminhe de cabeça erguida e olhe firmemente para frente. Ouse ser perigoso. Encoraje a serotonina a fluir permanentemente através dos caminhos neurais, sedentos por sua influência calmante […]
Esse parágrafo, a meu ver, resume bem a tese do autor. Contudo, para sermos honestos com Peterson temos que olhar também para seus argumentos. Em primeiro lugar, ele acredita que exista uma hierarquia de dominância e que essa seja muito muito antiga. Isso porque ela estaria presente em seres ancestrais como as lagostas, os quais estariam aqui por cerca de 350 milhões de anos.
A ideia é simples. Os recursos são limitados e todos os seres desejam a melhor condição possível. No caso das lagostas, a luta seria pela melhor moradia, a mais segura e com maior acesso a alimentos. Suponha um microuniverso limitado por um número finito de lagostas, pela geografia e qualidade das moradias. Obviamente, teríamos um conflito e os animais disputariam entre si a melhor toca de Maragogi.
Contudo, o macho vencedor não obtém apenas isso. Ele ganha também status; isso o faz conquistar todo o resto, incluindo as melhores fêmeas. Por outro lado, o perdedor perde tudo, inclusive a vontade e coragem para lutar. Ele passa a viver se arrastando, como um derrotado e terá um resto de vida sofrível. Ou seja, o vencedor leva tudo; o perdedor, no entanto, perde tudo; essa é a pergunta final no show do milhão.
Sabendo que apenas um indivíduo levou o prêmio máximo do programa, encarar a pergunta derradeira requereria muita coragem. Não nos espanta que a maioria resolveu não se arriscar. E, pasmem, com as lagostas não seria tão diferente assim. Peterson explica que existem quatro níveis de enfrentamento e que, na maioria das vezes, o combate não acontece ou ele é interrompido antes de ser fatal. No entanto, lagostas não pensam. Elas não decidem racionalmente manter o prêmio obtido. Por isso, o autor diz que fugir ou lutar é uma resposta fisiológica à uma troca de informações bioquímicas. Simples assim; ciência pura.
Ele afirma ainda que quem vence tem mais chances de continuar vencendo. Essa é a famosa lei de Price, que também seria regulada por hormônios. Nesse caso, especificamente Serotonina e Octopamina. Todo o comportamento posterior da lagosta vencedora ou perdedora acaba sendo, de maneira direta ou indireta, uma consequência do balanço entre esses dois. Simples assim; ciência pura.
É importante lembrar que o psicólogo faz uma ressalva. Seres mais evoluídos vivenciariam esse fenômeno de maneira mais complexa; por exemplo, o vencedor se associaria ao perdedor para mútua proteção; ou um terceiro concorrente, inferior fisicamente aos primeiros, aguarda o término da luta para desafiar o vencedor, já cansado e ferido.
Então, Peterson introduz seu segundo argumento. Ele passa a avaliar a natureza da natureza. Segundo ele, uma verdade incontestável acerca da biologia é o fato dela ser conservadora. Algo apenas evolui tendo por base o que já existe; coisas novas podem ser acrescentadas e antigas sofrerem mudanças, mas, de maneira geral, tudo permanece igual, inalterado. Ou seja, a natureza não é contrária às mudanças, ao progresso, mas ela testa, seleciona tudo muito bem, antes de colocar em prática. Ao lerem isso, os olhos dos liberais-conservadores tupiniquins se enchem de lágrimas!
Peterson explica que esse conservadorismo só é possível porque a natureza não é meramente estática. Antes, ela é, ao mesmo tempo, estática e dinâmica. Mas como assim? Segundo ele, a natureza funcionaria em um regime de ciclos de estabilidade e instabilidade. Aquilo que está mudando rapidamente estaria contido em outras coisas, que mudariam menos rapidamente. Assim, não é como se houvesse um ideal a ser alcançado ao final das constantes evoluções; mas uma adaptação como em uma dança, ao movimento do condutor, que também vai mudando seus passos de acordo com a música. É o caos dentro da ordem, dentro do caos, dentro de uma ordem maior. A ordem mais real é aquela que é mais imutável. 1Peterson, Jordan. 12 regras para a vida; um antídoto para o caos. Editora Alta Books, 2018, cap. 1. Simples assim; ciência pura.
Seguindo essa lógica, quanto mais tempo uma característica teve para ser testada e selecionada, mais chance ela teve de ser excluída. Se ela não foi excluída, ela deve ser verdadeira; ela teve mais tempo para moldar a vida. Tudo o que importa, sob uma perspectiva darwinista, é a permanência – e a hierarquia de dominância, embora possa parecer social ou cultural, está presente há cerca de meio bilhão de anos. É permanente. É real. 2Peterson, Jordan. 12 regras para a vida; um antídoto para o caos. Editora Alta Books, 2018, cap. 1.. Simples assim; ciência pura.
Agora percebemos que se as premissas forem verdadeiras, a mesma lógica poderia ser aplicada a seres humanos. Aqueles que têm os melhores genes e/ou cresceram em contextos melhores estariam mais acostumados a vencer; estariam no topo da hierarquia de dominância.
Contudo, Houston, we have a problem! Humanos por conta de sua racionalidade caem em ciclos viciosos, transtornos e depressão. Tudo por não saberem lidar com as emoções geradas por esse desequilíbrio hormonal.
E qual seria a cura? Bom, se tudo se resume a bioquímica, basta produzirmos o hormônio certo em nós. Para Peterson, isso é possível. O primeiro passo é o despertamento. O indivíduo precisa entender e aceitar que há um monstro dentro de si. Ele é capaz de lutar. Ele é capaz de se defender. Ele é capaz de almejar algo mais. Isso diminuiria o seu medo e aumentaria seu respeito próprio.
Sabendo disso, o segundo passo seria levantar a cabeça. No entanto, algo mais chama atenção aqui. Para Peterson esse ato de levantar a cabeça tem também implicações metafísicas. Ele reconhece que não somos só matéria e, por isso, essa atitude também significa, evoca e demanda 3Peterson, Jordan. 12 regras para a vida; um antídoto para o caos. Editora Alta Books, 2018, cap. 1. um erguer-se metafisicamente. Simples assim; não é ciência pura.
Portanto, costas eretas; ombros para trás. Erga a cabeça e encare a vida com suas lutas. Mantenha a postura de vencedor e em algum momento você passará a vencer, de fato. Essa é, em resumo, a regra número 1.
O contraponto cristão
E o que se poderia dizer a respeito de tudo isso? Em primeiro lugar, a hierarquia de dominância em um contexto bem limitado como no caso das lagostas é clara. É fácil definir o prêmio obtido (melhor moradia e parceiras reprodutivas) e o modo de dominância (força física). Assim, fica evidente o que significa ser um vencedor e um perdedor.
No entanto, como esse conceito seria aplicado às relações humanas, que são infinitamente mais complexas? Qual o prêmio do dominante? Melhores parceiras, prazer sexual, luxo, conforto? Será que todos esses prêmios são, de fato, o melhor prêmio, o mais valioso? Quem define o valor do prêmio? Todos buscam as mesmas coisas? Tudo isso é definido pela bioquímica ou há um componente metafísico? Se há, qual seria ele?
Indo um pouco além, qual o modo de dominância? O poder é financeiro, político ou vem pela força? Seria uma combinação dos três? Ou qual dos três seria o mais forte? Esses seriam, de fato, os poderes mais fortes que existem? Há um limite para a soberania de cada esfera de dominância? Qual seria ele? 4Dooyeweerd, Herman. Estado e soberania; ensaios sobre cristianismo e política. Editora Vida Nova, 2014, p. 126. Tudo bem. Peguei pesado. Não vamos apelar trazendo Dooyeweerd para a discussão.
A meu ver, Peterson comete o erro que todo Darwiniano comete. Quando um (bom) professor deseja passar um conceito difícil para seus alunos, ele começa explicando-o em um cenário mais simples, o mais simples possível. Então, depois disso, ele aplica o conceito no cenário complexo, prova inequivocamente a veracidade do mesmo e, assim, convence seu aluno. Os darwinianos geralmente são muito bons em explicar conceitos no cenário simples, mas sempre falham em aplicar esse mesmo conceito nos cenários complexos.
Por que isso acontece? Ora, porque existem limites para a ciência. O papel da ciência é tão somente lidar com aquilo que é observável e que pode ser, de alguma forma, mensurado. Para uma teoria científica deixar de ser teoria ela precisa ser plenamente comprovada com dados. E é justamente pela incapacidade de se provar inequivocamente a teoria da evolução, que ela ainda é (e sempre será) uma teoria.
Entretanto, como se pode suprir os limites da ciência? Com a filosofia, é claro. Ela é quem lida com o imensurável, com aquilo que nem sempre pode ser facilmente observado. Por que isso importa aqui? Porque um darwiniano traz consigo uma filosofia em particular, o materialismo filosófico. Essa ideia afirma que o reino material é tudo o que existe, que sempre existiu e sempre existirá… De acordo com este ponto de vista, coisas como coragem, beleza, amor, o bem e o mal são ilusões…O amor não passa de hormônios. 5Dembski, William & Witt, Jonathan. Design inteligente sem censura; Um guia claro e prático para o debate. Editora Cultura Cristã, 2012, p. 12.
Por isso, dentro dessa cosmovisão, faz sentido definir o comportamento vencedor da lagosta pelo balanço hormonal. E dada alguma similaridade com o ser humano é compreensível que se busque aplicar esse conceito em nosso caso também. Porém, se o autor faz isso sem responder as perguntas levantadas anteriormente, ele dá um salto lógico gigantesco. Se você acredita que tudo é matéria, esse salto se torna um pouco (bem pouco) menor. Mas se erguer a cabeça tem implicações metafísicas… Bom, digamos que o salto volta a ser gigantesco. As coisas, de fato, não são simples quando se trata de seres humanos. Não é ciência pura.
Além disso, há algo importante a ser lembrado. A interpretação da realidade observável depende da cosmovisão do observador. Um darwiniano vai usar semelhanças ínfimas para justificar a evolução, tentando aplicar o particular ao todo. Um cristão enxergará a majestade do Deus criador e o glorificará pela criação. Veja como um cristão interpreta similaridades na realidade observável:
Se alguém se desse ao trabalho de comparar o ensinamento moral dos antigos egípcios, dos babilônios, dos hindus, dos chineses, dos gregos e dos romanos, ficaria de fato impressionado com a semelhança que têm entre si e também em relação ao nosso ensinamento moral…imagine um país em que as pessoas fossem admiradas por fugir da batalha ou em que uma pessoa se orgulhasse de ter enganado todas aquelas que foram legais com ela. Seria o mesmo que tentar imaginar um país em que dois mais dois fosse igual a cinco… Parece, então, que seremos forçados a aceitar que existe o certo e errado.
Lewis, C.S. Cristianismo Puro e Simples. Editora Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 32,33.
Lewis prova a existência da lei natural, que define objetivamente certo e errado e, portanto, aponta para um padrão absoluto de moralidade. Essa lei está cravada no coração do homem e foi posta lá pelo próprio Criador. Cristãos e não-cristãos são capazes de observar os fatos, a realidade. Mas, por conta de possuírem cosmovisões inteiramente diferentes, chegam também a conclusões diferentes. O cristão olha para a hierarquia de dominância das lagostas, se maravilha com ela e louva a Deus por tamanha engenhosidade.
Passemos ao segundo argumento. A primeira ideia trazida por Peterson é que algo só evolui tendo por base o que já existe. Sendo assim, pergunto: como se deu a primeira evolução? Se algo só evolui tendo por base o que já existe, o que existiu primeiro para possibilitar a primeira evolução? Sim, eu sei que a teoria da evolução não se propõe a explicar tal detalhe, mas isso não significa que a pergunta seja indevida.
A segunda ideia, que se relaciona com a primeira, diz que a natureza é ao mesmo tempo estática e dinâmica, sendo regulada por diferentes velocidades de mudança. O que muda mais rapidamente está sempre contido dentro do que muda menos rapidamente. E aqui cabe novamente uma pergunta, muito semelhante à primeira: não seria, então, necessário algo imutável que sustentasse todas essas mudanças? Tome a coisa mais estável nesse ciclo de estabilidade e instabilidade de Peterson. O que sustenta a figura mais imutável do mundo observável? Quem é o condutor da dança? Agostinho responde:
Se a mutabilidade existia, de onde provinha senão de Vós, de quem todas as coisas recebem o ser, de qualquer modo que elas sejam?… Vós, pois, Senhor, que não sois umas vezes uma coisa e outras vezes outra, mas o mesmo, o mesmo, sempre o mesmo, o Santo, Santo, Santo, o Senhor Deus onipotente, Vós, no princípio que procede de Vós, e na Sabedoria que procedeu de vossa substância, criastes alguma coisa do nada.
Santo Agostinho. Confissões. Editora Vozes de Bolso, 2015, p. 328.
Conclusão
Se a característica que mais existiu teve mais tempo para moldar a vida, o que dizer daquele que sempre existiu, do imutável Senhor do universo, do Eterno? Nesse novo cenário, eu faço a pergunta: o que realmente significa ser um vencedor nessa vida? Ainda, será que naquilo que importa não nascemos todos em condições de igualdade; todos pecadores, culpados perante o Senhor? E, se isso for verdade, será que a dor e o sofrimento não possuem um papel importante em nossa existência? Será que devemos conhecer nosso monstro interior não para aumentar nossa autoestima, mas para reconhecermos que não podemos sozinhos enfrentar a monstruosidade pecaminosa dentro de nós; para reconhecermos que sozinhos não podemos, de fato, vencer?
Peterson é brilhante, não nego. Não me espanta o sucesso de um autor que oferece boa base intelectual para todo o humanismo de nosso tempo. Provavelmente, se eu não fosse cristão, concordaria mais com ele. Todavia, em última instância, o crente sabe que a sua micro história faz parte de uma história muito maior, que não diz respeito a ele; sabe que, de certa forma, nascemos para ter problemas. 6Wilson, N.D. Morrer de tanto viver. Editora Monergismo, 2018, p. 75
O sofrimento do cristão também faz parte dessa história maior. Quando ele não consegue se levantar e vencer sozinho, ele reconhece que precisa desesperadamente de Deus. E nisso o Rei é glorificado! Portanto, joelho dobrado e coração contrito. Para o cristão, essa é a primeira regra para a vida.