Não é novidade para ninguém que a cultura pop está repleta de ideias sobre o futuro tecnológico da nossa sociedade. Qualquer filme que, de alguma forma, apresenta uma visão dos anos futuros com certeza tem uma visão própria do impacto da tecnologia na nossa sociedade.
Em Wall-E, por exemplo, a tecnologia tornou os humanos sedentários, totalmente dependentes das facilidades tecnológicas, grudados em uma cadeira auto-dirigida e a uma tela (dizendo assim, até parece a nossa sociedade, não?). Já em Matrix, as máquinas dominaram o mundo e tomaram o lugar de seus criadores, os forçando a viver numa realidade simulada onde suas mentes são controladas e seus corpos fornecem bioeletricidade. Exterminador do Futuro nos apresenta a SkyNet, outra super inteligência artificial que, após se tornar auto-consciente resolve acabar com a humanidade, a qual julga como ameaça. Outros filmes oferecem uma visão menos caótica e temível, como por exemplo “O Homem Bicentenário”, onde um pacífico robô resolve “tornar-se humano” após perceber que as pessoas pelas quais ele desenvolvia sentimentos iriam morrer e ele continuaria vivo, como robô que era.
Todos esses filmes extrapolam, a sua maneira, a ideia de como seria um mundo onde a tecnologia tivesse ultrapassado o ponto da “singularidade”, quando os avanços tecnológicos seriam tamanhos que causariam uma mudança irreversível na humanidade. O pensamento do cristão, contudo, não deve ser levado pelos alarmismos e sim estar alicerçado na sua fé, entendendo pela ótica Bíblica os fenômenos que nos rodeiam, e o avanço da tecnologia não é exceção.
O que são Inteligências Artificiais
Inteligências Artificiais são, na verdade, não muito mais que modelos estatísticos complexos e engenharia aplicada. É uma mistura de vários campos dessas disciplinas com os da ciência da computação, a qual só foi possível por causa do grande avanço na capacidade de processamento dos computadores atuais. No fim das contas, não há mágica alguma no que chamamos de IA. São diversos modelos e algoritmos de Aprendizado de Máquina, que no fim das contas quando destiladas, numa definição muito simplista (arriscando ser reprovado pela comunidade de tecnologia!) são séries e séries de contas que aproximam um resultado ou uma decisão a ser feita.
De forma simples, a diferença entre um modelo de Aprendizado de Máquina ou um modelo estatístico e a chamada Inteligência Artificial é apenas de que a última geralmente é mais abrangente, não se focando apenas em uma tarefa específica. Uma IA de um carro autônomo, por exemplo, tem a capacidade de identificar placas, identificar pedestres, calcular suas rotas e adaptar-se ao trânsito. Tudo isso usando apenas matemática internamente com os dados adquiridos por câmeras, sensores, etc.
Inteligências Artificiais são uma ameaça ao Cristianismo?
Vou começar com a resposta, que é um ressonante não. E essa minha resposta não é por ignorar os avanços da tecnologia – muito pelo contrário, esse é meu trabalho diário! Digo isso porque, como cristãos, temos um chamado de dominar sobre a criação e não ser dominado por ela. Eu digo isso porque sabemos que Deus, que está acima de nós, é soberano sobre todas as coisas que foram, são e serão. A sua própria imagem colocada por Deus no ser humano nunca poderá ser ofuscada ou mesmo comparada por qualquer coisa que nós façamos.
Se usados para o bem, os avanços tecnológicos glorificam a Deus
Com certeza qualquer Inteligência Artificial pode ser projetada e usada em maneiras que desonram a Deus. Contudo, isso é fato para qualquer invenção que o homem fez: o mesmo avião que foi inventado para encurtar distâncias também serviu para lançar as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Uma bomba atômica, em si, pode ser fruto do mal uso da física, como pode um Raio X ser fruto do bom uso dela.
Quando usamos a IA como uma ferramenta, de acordo com as ordenanças morais de Deus, a usamos como exemplo de obediência à ordenança divina de administrar a criação e glorificar a Deus com o que fazemos. Como qualquer invenção humana, devemos aproveitar a tecnologia avançada para o bem-estar da humanidade como um todo, e não para fins duvidosos e até mesmo maléficos.
Entendendo tais possibilidades como fato no modo como a humanidade usa o que tem a sua disposição, é possível ver que o avanço das IAs nos dá possibilidade sem precedentes.
IA e a Cosmovisão Cristã
Como podemos então encaixar o conceito de “inteligências artificiais” dentro da nossa cosmovisão? Me apoiando no excelente artigo “Inteligência Artificial e a Alma” de Russell C. Bjork, gostaria de tomar uma abordagem ontológica, observando algumas perguntas que são críticas dentro da concepção bíblica de o que é o “ser”.
Em primeiro lugar, existe algum conflito com a existência de inteligências artificiais e o que a Bíblia nos ensina sobre a origem do ser humano? Parece claro que não. Gênesis 2.7 é bem claro quando diz: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” Deus é o detentor do fôlego da vida, e é por meio dEle que somos feitos almas viventes. O Criador nos conhecia muito antes de sequer termos uma inteligência humana, mesmo antes de respirarmos. Por tanto, há mais em ser homem do que apenas ter inteligência.
Semelhantemente, haveria então algum conflito entre a existência de inteligências artificiais e nós sermos feitos imagem de Deus? Continuo dizendo que não, dado que fomos criados de maneira especial (Gn. 1:26-31). A inteligência similar a humana, em si, não é grande feito e nem diminui o valor do homem como imagem de Deus. É possível, por exemplo, encontrar inteligência e traços de consciência (mesmo que limitados) até mesmo em animais. Não é isso que nos torna diferentes.
O fim para o qual o homem foi criado é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre 1(Catecismo Maior de Westminster, pergunta 1). O Criador fez o homem e o colocou no Jardim para reinar sobre a criação e para ter um relacionamento com Ele. Bjork conclui que “o que torna os humanos especiais não é o que a humanidade é, e sim o relacionamento de Deus conosco baseado em seu propósito para nos criar”.
A cosmovisão de um Cristão, engloba mais que o mundo material e, mesmo que a tecnologia consiga emular as sinapses do nosso cérebro, nunca contemplará a plenitude do que é “ser humano” debaixo da mão de Deus. Nós somos, pelo plano de Deus e sua Graça salvadora, muito mais que máquinas bioquímicas de carne feitas pelo acaso, mas sim o trabalho cuidadoso de nosso Senhor. Vivemos num mundo físico e químico sim, cujas leis Deus definiu, mas momentaneamente. Cremos, nas palavras do Credo Apostólico, “na ressurreição do corpo e na vida eterna”. Máquina e cálculos complexos nenhum podem oferecer tal realidade, somente Deus o pode.
Como abordar o assunto?
Agora que abordamos o quanto o ser humano – sendo criação especial de Deus – é superior a qualquer IA, podemos claramente mudar nossa abordagem. Ao tempo que boa parte do mundo assume uma postura passiva – como se estivéssemos ouvindo dos Borg de Star Trek que “resistir é inútil” – é dever do cristão que tem esse discernimento ser luz nesse momento também. Neste sentido nós que somos fortes devemos auxiliar os mais fracos (Rm 15.1).
É crucial que utilizemos a lente da Palavra para escrutinar tanto os problemas resolvidos quanto os problemas causados pelas IAs. Por exemplo, até onde é necessário reconhecimento facial em todos os lugares em nome da segurança e em detrimento da privacidade de cada um? Neste caso, cristãos devem pesar num dos lados da balança ao dizer que o uso manipulador dos dados e das IAs e a negação da privacidade completa não são compatíveis com o que é o amor ao próximo.
Também é necessário que nós pensemos e colaboremos com questões éticas e no como usar a tecnologia para o bem, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade. (1 Tm 2:2). Algumas questões pertinentes são: como podemos utilizar as IAs de forma responsável nas pesquisas, na medicina, na segurança e no meio ambiente? Como essas tecnologias podem ser aplicadas para auxiliar pessoas com deficiências? De que modos essa capacidade das IAs podem ser utilizadas para elevar ainda mais nosso domínio sobre a Criação? De que modo essas tecnologias podem ser usadas na obra de Deus – na tradução da Bíblia para novas línguas, aliada a outras tecnologias no auxílio humanitário, em situações de perigo, etc. Tudo isso é agradável a Deus, e usar essa ferramenta bem é glorificar a Deus.
E, por último, vejo que nós, que somos filhos daquele que é o padrão ético e moral supremo, temos a obrigação de ser sal e luz nas discussões relacionadas à ética das IAs. A comunidade de tecnologia no geral tem debatido temas pertinentes, como por exemplo:
- Quem é o responsável quando um veículo autônomo bate e mata pessoas?
- Como garantir que as aplicações de inteligência artificial mantenham padrões de privacidade, justiça e transparência quando aplicados a Big Data?
- Quais os impactos em se favorecer automação e otimização tecnológica em detrimento dos empregos de seres humanos?
- Robôs autônomos deveriam ser usados em guerras e no policiamento de modo letal?
Existem ainda muitas outras questões sem respostas satisfatórias e que serão muito relevantes nos próximos anos. Wayne Grudem em “Econômia e Política na Cosmovisão Cristã” diz que “influenciar de modo positivo o governo é uma forma de amar o próximo”, dizendo que devemos buscar o bem do próximo em cada aspecto da sociedade […], empenhando para ter um bom governo e uma boa legislação”. Por tanto, creio que é nosso dever, como cumpridores do mandamento de Jesus em Mateus 22.39, intervir e colaborar com as discussões que ocorrem até mesmo em assuntos cabeludos como Inteligência Artificial.
Conclusão
Uma cosmovisão Cristã não deve ser facilmente assustada por qualquer coisa. Devemos examinar tudo e reter o que é bom (1 Ts 5.21). Nós, que temos consciência de quem somos e do nosso maior propósito como seres feitos à imagem de Deus, devemos participar dos diálogos que estão ocorrendo à nossa volta e ajudar a manter as IAs “na linha”. Devemos ser proponentes de um caminho melhor, no qual, como todas as outras criações da humanidade, podemos usar também as inteligências artificiais para glória de Deus.