Em geral, entendemos cosmovisão como os pressupostos que regem nossa vida. Então, por exemplo, a cosmovisão de um cristão vai ser o correto entendimento e percepção de mundo baseado em “criação-queda-redenção-consumação”. Essa definição, embora não seja incorreta, pode ser incompleta. Isso porque nossa visão de mundo vai muito além do que colocar ou tirar alguns pressupostos de nossa mente. Não trocamos nossos pressupostos como se tirássemos um pen drive de nossa mente e colocássemos outro em seu lugar. A cosmovisão vive no ambiente mais profundo do ser humano, seu coração. Para entendermos este conceito melhor, vamos usar a definição de James Sire (2012, p. 179). Segundo o autor:
“Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma estória, ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos.”
Não é a ideia entrar em detalhes de cada aspecto da proposição de Sire. O importante é perceber que ele coloca o coração como algo pré-teórico. Ou seja, antes de formarmos as pressuposições, temos um compromisso do coração que guia a história de nossa vida. Os pressupostos são consequência da inclinação do coração, não sua causa. Estes pressupostos podem ser sustentados de modo tanto consciente quanto inconsciente e guiam nossa forma de viver no mundo.
A pergunta que vem em seguida é: como a inclinação do coração é, portanto, formada? Em primeiro lugar, precisamos entender coração não com o sentido atual de fonte apenas de sentimentos. O sentido que Sire utiliza de coração é o sentido bíblico, os quais incluem, segundo o autor: “[…] as noções de sabedoria (Pv 2.10), emoção (Ex 4.14; Jo 14:1), desejo e vontade (1 Cr 29.18), espiritualidade (At 8.21) e intelecto (Rm 1.21)”.
Este coração, que é o centro da humanidade, é formado e influenciado desde a infância por diversos fatores que moldam a forma com que cada pessoa passa a enxergar o mundo. Segundo Naugle (2017, p. 346):
“[…] desde a infância uma quantidade torrencial de conteúdo é despejada no reservatório do coração de fontes aparentemente ilimitada de qualidade variável, algumas puras, algumas poluídas. As diferentes influências modeladoras do coração incluem tradições religiosas, filosóficas e culturais; condições socioeconômicas; várias instituições como o casamento, a família e a educação; amizades e relações humanas; escolha vocacional e experiência profissional; saúde psicológica e física; experiências sexuais; guerras; e assim por diante.”
Pense, por exemplo, em uma pessoa que foi abusada quando criança por um parente e viveu em uma família desestabilizada. Não é extremamente provável que ela tenha uma visão de lar e casamento diferente de uma pessoa que viveu em uma casa amorosa? Mesmo que ambas tenham a mesma religião, uma terá muito mais dificuldade que a outra em assimilar essa questão.
Todas essas experiências têm, obviamente, uma interação com o mundo externo. E por conta disso, nossas visões de mundo podem ser alteradas, entrar em crise, ser fortalecidas, etc. Mas é importante perceber que são todas essas experiências que modelaram nosso coração que guiarão nosso pensamento e nossos pressupostos. Isso, de maneira alguma, elimina a verdade objetiva do mundo criado. Mas basta pensarmos como existem diferenças de pensamento entre as pessoas que viveram no século V, XIII, XVIII e XXI. Elas foram influenciados por fatores diferentes, o que formou diferentes visões de mundo. Apesar disso, o que era verdade no século V se mantém verdade hoje. Quanto mais nossas percepções se aproximam e vivem de acordo com a realidade externa a nós, mais próximo estamos de unir os aspectos subjetivos aos objetivos.
Portanto, a nossa cosmovisão cristã aceita as questões objetivas, ou seja, a realidade exterior que não depende de nós, como por exemplo: a ideia de um Deus Triúno; de um Deus Criador; as leis morais eternas; a ideia de criação-queda-consumação-redenção, e por aí vai. Mas também entende que questões subjetivas influenciam na nossa forma de ver o mundo. Por isso diversos cristãos, com os mesmos pressupostos de criação-queda-redenção-consumação, tem o pensamento tão diferente. Eles aceitam a existência do pecado, de Deus, da moral. Mas os fatores subjetivos, ou seja, as coisas que encheram seu coração durante seus anos de vida, formaram visões de mundo diferente.
E o que isso tem a ver com cultura e imaginação? Tudo.
Existe uma relação interessante entre cultura e cosmovisão. Da mesma forma que, como vimos, fatores externos ajudam a formar nossa visão de mundo ao inserir em nossos corações os mais diversos conteúdos, assim também a nossa cosmovisão molda a cultura em que vivemos. Afinal, as cosmovisões são formadas por pessoas, as quais necessariamente tem uma visão de mundo. Não existe ninguém neutro. Todos externam aquilo que está em seu interior. Este é um dos principais fatores para entender que uma pessoa regenerada precisa produzir arte, música e histórias com pressupostos cristãos, sendo eles explícitos ou implícitos. Um coração voltado para Deus vai refletir isso tanto na vida da pessoa quando naquilo que ela produzir.
Com base nisso, uma das principais formas de se produzir e moldar a cosmovisão de uma pessoa é por meio da formação de imaginário. O enredos e histórias que ouvimos, que lemos, que vemos em filmes e pinturas ajudam a construir nossa percepção do mundo ao redor. Podemos ter como exemplo as narrativas. Mitos, contos, histórias em geral são formas usadas desde a antiguidade para construir e moldar o pensamento das crianças. Diversos povos se utilizavam de sua mitologia para dar significado e uma forma de enxergar o mundo aos seus habitantes. Um grande problema, como Terry Eagleton demonstra em seu livro “A morte de Deus na cultura”, é que o culto à Razão existente principalmente desde o advento do Iluminismo retirou o mistério e a beleza dessas histórias para existir uma busca da realidade apenas por meio da razão. Segundo Naugle (p. 380): “[…] a humanidade moderna, ‘guiada sem mitos’, está faminta e em busca de qualquer migalha narrativa de que possa se alimentar, como as compulsões e atividades frenéticas da vida contemporânea o mostram.”. Apesar disso, como o próprio Naugle diz, é importante perceber que até mesmo a ideia de que a razão é protagonista no mundo é, no fundo, uma narrativa. Não podemos escapar das histórias que nos conduzem e nos guiam. A questão é: como lidar com elas?
Em seu livro “A beleza salvará o mundo”, Gregory Wolfe faz duras críticas ao envolvimento dos cristãos com a questão do imaginário e formação cultural. Por um lado, temos os cristãos progressistas que simplesmente, nas palavras do autor, “batizam” tudo que está à sua frente. Desta forma, estes aceitam tudo que a cultura traz, sem filtrar o que é o bom e o que deve ser descartado. Por outro lado, os cristãos mais conservadores se fecharam em uma caixinha “gospel” produzindo arte e cultura apenas para dentro do nicho cristão, copiando as coisas “do mundo”. É colocado um selo cristão de aprovação, deixando de lado qualquer imaginação e poder criativo.
Para piorar, os cristão vêm se envolvendo mais com questões políticas e deixando a cultura de lado, nas mãos de pessoas com a mentalidade secular. Se envolver com a política não é um mal em si. O problema é que é uma disputa na ponta do iceberg. A política e a discussão intelectual são moldadas por questões que são pré-teóricas, entre elas a espiritualidade, o mito e as narrativas de cada um. Segundo Wolfe (2015, p. 34): “Eu antes acreditava que a decadência do Ocidente somente poderia ser revertida por meio da política e dialética intelectual; agora estou convencido de que uma renovação autêntica só poderá emergir das visões imaginativas dos artistas e místicos”. Uma demonstração disso é possível ver, segundo Eagleton, nas diferentes formas de enxergar a política nos séculos XVII e XVIII. Enquanto no primeiro, influenciado pela maneira de enxergar o mundo de Newton, Leibniz e Descartes, na qual existe um Ser que rege e direciona o mundo, a monarquia reinava como um espelho de um líder colocando ordem em seu reinado; no século XVIII existiu uma ampliação de uma narrativa materialista/panteísta como em Diderot e Spinoza, no qual, ao tudo ser colocado no mesmo patamar, resultou em uma percepção dentro de algumas nações de que todos deveriam ter o mesmo poder.
Temos, portanto, que reavaliar onde estão nossos esforços. Quando os dedicamos somente à vida política, eliminamos que existem fatores muito anteriores que moldam a cosmovisão de cada um.
O problema existente hoje com as pautas contrárias aos valores cristãos se iniciam muito antes de serem colocados políticos de determinada ideologia no poder. Começam no que cada pessoa consome em seu entretenimento, em suas leituras, nas narrativas apreendida nos ambientes em que vivem. Obviamente que a arte e a cultura não tem poder redentivo, no sentido em que pode salvar a alma de uma pessoa. Mas ela pode trazer à tona a verdade para moldar a forma de enxergar o mundo, tanto de cristãos quanto de não cristãos.
Para isso, é preciso de um certo equilíbrio, como diz Wolfe (p. 115):
“A fé deve ser falada, mas nem na voz ameaçadora do reacionário, nem nos tons débeis e envergonhados dos liberais. A transformação é o que a fé e a imaginação tem em comum: elas pegas as coisas da vida comum e as colocam à luz das questões definitivas de pecado e redenção.”
Não é desejar voltar ao passado e tentar reconstruir a idade média em nossos dias atuais. É preciso lembrar que diversos autores e artista que hoje são venerados pelos saudosistas foram de vanguarda quando iniciaram suas obras. Mas também ninguém deve aceitar todas as coisas por serem contemporâneas, independente de seu conteúdo. O chamado de Wolfe para os cristãos é o de criação de conteúdo, a partir de uma visão bíblica do universo, para dar às pessoas uma resposta às questões essenciais da vida. É a criação de um imaginário que, embora não salve a alma das pessoas (caso contrário estaríamos ansiando exercer uma obra do Espírito Santo), tenta trazer ao mundo uma maneira de viver mais próxima da realidade, daquilo que Deus criou.
Para isso, temos de ter em mente sempre uma das inúmeras tensões que o cristianismo nos coloca. Por exemplo, o fato de Cristo ser, ao mesmo tempo, homem e Deus nos coloca no meio de uma linha divisória. O foco apenas na divindade de Jesus nos leva, sem dúvida, a temê-lo e adorá-lo. E isso é bom. Mas também pode nos alienar do mundo que Cristo nos colocou para viver e abençoar. Por outro lado, o foco em excesso na humanidade de Cristo pode transformá-lo simplesmente em um exemplo social, em um “cara legal”. Da mesma forma vivemos consciente de que somos peregrinos neste mundo, mas não podemos de lembrar que até nossa morte ou a volta de Cristo permanecemos nele. É a aceitação e visão correta dessa tensão que pode auxiliar o cristão a lidar e transformar melhor o mundo ao seu redor.
Por fim, mas não menos importante temos de ter em mente a ideia de oração e contemplação como uma prática anterior à ação. Para abençoar o mundo é preciso, anteriormente, ter uma fé viva. E uma das formas mais úteis de uma fé que pode produzir bons frutos é por meio de uma interiorização. Não se fechar em si como um fim último, como bem crítica Louis Lavelle os claustros. Mas uma interiorização para abençoar os outros. “Ninguém jamais fará algo de grande no mundo se primeiro não for capaz de fechar-se em si mesmo.” (LAVELLE, 2014 p. 106). E ainda: “A ideia de que contemplação e oração precede a ação deve ser óbvia e natural” (WOLFE, p. 11).
Entre as muitas coisas que formam nossas cosmovisão, estão aquelas que consumimos, vivemos e interiorizamos. Isso vai criar nosso imaginários e moldar nossa relação com o mundo. Essa é a importante reflexão que os cristão tem de fazer. Quando nos excluímos demais da cultura, deixamos que outras correntes dominem e respondam perguntas essenciais à todo ser humano. Ao nos envolvermos em excesso, é possível que mistura seja tão grande que faça com que o sal que devemos ser perca o sabor. Nosso desafio é saber conviver com essa tensão, entendendo como podemos abençoar as nações produzindo uma resposta ao imaginário humano de uma forma que as pessoas entendam quem elas são: grandes por serem imagem e semelhança de Deus, miseráveis por conta do pecado (baseado em Pascal). Também é possível levar as pessoas a perceberem a mensagem de esperança para toda a miséria. A qual, no fim das contas, não está em um quadro bem pintado, em uma história bem contada ou em um livro bem escrito. Mas em uma pessoa: Jesus Cristo. E é para ele que tudo deve apontar.
REFERÊNCIAS
EAGLETON, Terry. A morte de Deus na cultura 1. ed. Brasília: Editora Record, 2016.
LAVELLE, Louis. A consciência de si. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2014.
NAUGLE, David. Cosmovisão: a história de um conceito. 1. ed. Brasília: Editora Monergismo, 2017.
PASCAL, Blaise. Mente em chamas: Fé para o cético e indiferente, 1 ed. São Paulo: Ed. Palavra, 2007
SIRE, J. Dando nome ao elefante. 1. ed. Brasília: Editora Monergismo, 2012.
WOLFE, Gregory. A beleza salvará o mundo: recuperando o humano em uma era ideológica,.1. ed. Campinas: Editora Vide, 2015.